29 enero, 2012

Carta O BERRO] Uma interessante genealogia da resistência

“Inventando lutas em rede”
Excerto do item 1.3 "A Resistência", do Cap. I "A Guerra", in HARDT, Michael e NEGRI, Antonio, Multidão. Guerra e democracia na era do Império [2004], Rio de Janeiro: Record (trad. Clóvis Marques; rev. Técnica Giuseppe Cocco), 2005, pp. 116-126.



Voltando a examinar a genealogia das revoluções e dos movimentos de resistência da era moderna, vemos que a ideia de “povo” tem desempenhado papel fundamental, tanto no modelo de exército popular quanto no da guerrilha, no estabelecimento da autoridade da organização e na legitimação do seu uso da violência. O “povo” é uma forma de soberania que pretende substituir a autoridade vigente de Estado e tomar o poder. Essa moderna legitimação da soberania, mesmo no caso dos movimentos revolucionários, é na realidade produto de uma usurpação. O povo muitas vezes serve como meio termo entre o consentimento dado pela população e o comando exercido pelo poder soberano, mas de maneira geral a expressão serve apenas como tentativa de validar uma autoridade estabelecida. A moderna legitimação do poder e da soberania, mesmo em casos de resistência e rebelião está sempre assentada num elemento transcendente, seja essa autoridade (segundo as expressões de Max Weber) tradicional, racional ou carismática. A ambiguidade do conceito de povo soberano revela-se uma espécie de duplicidade, já que a relação legitimadora tende sempre a privilegiar a autoridade, e não a população como um todo. Essa relação ambígua entre o povo e a soberania explica a permanente insatisfação que vimos observando com o caráter não democrático das formas modernas de organização revolucionária, o reconhecimento de que as formas de dominação e autoridade contra as quais lutamos permanentemente reaparecem nos próprios movimentos de resistência. Além da violência exercida pelo povo passam pela mesma crise a que nos referimos anteriormente em termos de legitimação da violência de Estado. Também aqui já não têm vigência os tradicionais argumentos jurídicos e morais.

Seria hoje possível imaginar um novo processo de legitimação que não se escore na soberania do povo, baseando-se, isso sim, na produtividade [p. 117] biopolítica da multidão? Poderão novas formas organizacionais de resistência e revolta finalmente satisfazer o desejo de democracia implícito em toda a moderna genealogia de lutas? Existiria um mecanismo imanente, que não recorra a qualquer autoridade transcendente, capaz de legitimar o uso da força na luta da multidão para criar uma nova sociedade baseada na democracia, na igualdade e na liberdade? Podemos sequer considerar que faça sentido falar de uma guerra da multidão?

Um modelo de legitimação que encontramos na modernidade e que poderia nos ajudar a atacar essas questões é o que anima a luta de classes. Não estamos pensando aqui tanto nos projetos dos Estados e partidos socialistas, que certamente construíram suas formas modernas de soberania, mas nas lutas cotidianas dos próprios trabalhadores, seus atos coordenados de resistência, insubordinação e subversão das relações de dominação no mercado de trabalho e na sociedade de maneira geral. As classes subordinadas organizadas em revolta nunca alimentaram qualquer ilusão sobre a legitimidade da violência de Estado, mesmo quando adotavam estratégias reformistas que as levavam a tratar com o Estado, forçando-o a providenciar mecanismos de previdência social e solicitando-lhe sanção legal, como no caso do direito de greve. Elas nunca esqueceram que as leis que legitimam a violência de Estado são normas transcendentais que mantêm os privilégios da classe dominante (especialmente os direitos dos proprietários) e a subordinação do resto da população. Sabiam que enquanto a violência do capital e do Estado repousa na autoridade transcendente, a legitimação de sua luta de classes baseava-se apenas em seus próprios interesses e desejos.[96] Desse modo, a luta de classes constituía um modelo moderno da base imanente de legitimação, no sentido de que não recorria a qualquer autoridade soberana para justificar-se.

Não consideramos todavia que a questão da legitimação das lutas da multidão possa ser resolvida simplesmente estudando-se a arqueologia da guerra de classes ou tentando estabelecer alguma continuidade fixa [p. 118] em relação ao passado. As lutas do passado podem fornecer exemplos importantes, mas as novas dimensões do poder requerem novas dimensões de resistência. Além disso, essas questões não podem ser resolvidas só mediante a reflexão teórica, devendo também ser atacadas na prática. Devemos retomar nossa genealogia onde a deixamos e ver como as próprias lutas reagiram.

Depois de 1968, o ano em que um longo ciclo de lutas culminou simultaneamente nas regiões dominante e subordinada do mundo, a forma dos movimentos de resistência e libertação começou a mudar radicalmente – uma mudança que correspondia às mudanças na força de trabalho e nas formas da produção social. Podemos reconhecer essa mudança primeiro que tudo nas transformações da natureza da guerra de guerrilha. A mudança mais óbvia foi que os movimentos de guerrilha começaram a transferir-se do campo para a cidade, dos espaços abertos para os espaços fechados. As técnicas de guerra de guerrilha passaram a ser adaptadas às novas condições de produção pós-fordista, de acordo com os sistemas de informação e as estruturas em rede. Finalmente, à medida que cada vez mais adotava as características da produção biopolítica, disseminando-se por todo o tecido social, a guerra de guerrilha colocava mais diretamente como sua meta a produção de subjetividade – subjetividade econômica e cultural, tanto material quanto imaterial. Em outras palavras, não era apenas uma questão de conquistar “corações e mentes”, e sim de criar novos corações e mentes mediante a construção de novos circuitos de comunicação, novas formas de colaboração social e novos modos de interação. Nesse processo, podemos distinguir uma tendência para ir além do modelo da moderna guerrilha, em direção a formas mais democráticas de organização em rede.

Uma das máximas da guerra de guerrilha, compartilhada pelos modelos maoísta e cubano, consistia em privilegiar o rural sobre o urbano. No fim da década de 1960 e ao longo da década seguinte, as lutas de guerrilha tornaram-se cada vez mas metropolitanas, especialmente nas Américas e na Europa.[97] [p. 119] As revoltas nos guetos dos americanos de origem africana na década de 1960 terão talvez constituído o prólogo à urbanização da luta política e do conflito armado na década de 1970. Naturalmente, muito dos movimentos urbanos desse período não adotaram o modelo organizacional policêntrico típico dos movimentos de guerrilha, seguindo em grande parte o velho modelo hierárquico e centralizado das estruturas militares tradicionais. O Partido dos Panteras Negras e a Frente de Libertação do Quebec na América do Norte; os tupamaros uruguaios; e a Ação Libertadora Nacional brasileira, na América do Sul, assim como a Facção do Exército Vermelho alemão e as Brigadas Vermelhas italianas na Europa foram exemplos dessa estrutura militar centralizada e passadista. Nesse período, surgiram também movimentos urbanos descentrados ou policêntricos cujas organizações se assemelhavam ao modelo da guerrilha moderna. Em certa medida, nesses casos, as táticas de guerra de guerrilha eram simplesmente transpostas do campo para a cidade. A cidade é uma selva. Os guerrilheiros urbanos conhecem capilarmente o seu terreno, de modo que podem a qualquer momento unir-se para atacar e em seguida dispersar-se, desaparecendo em seus esconderijos. Cada vez mais, no entanto, o foco não estava em atacar os poderes dominantes, mas em transformar a própria cidade. Nas lutas metropolitanas, tornou-se cada vez mais intensa a estreita relação entre desobediência e resistência, entre sabotagem e deserção, contrapoder e projetos constituintes. As grandes lutas da Autonomia na Itália na década de 1970, por exemplo, conseguiram temporariamente redesenhar a paisagem das grandes cidades, liberando zonas inteiras nas quais novas culturas e novas formas de vida vieram a ser criadas.[98]

A verdadeira transformação dos movimentos guerrilheiros nesse período, no entanto, pouco tem a ver com o terreno urbano ou rural – ou, antes, a aparente mudança para espaços urbanos é um sintoma de uma transformação mais importante. A transformação mais profunda ocorre na relação entre a organização dos movimentos e a organização [p. 120] da produção econômica e social.[99] Como já vimos, os exércitos de operários industriais organizados nas fábricas correspondem às formações militares centralizadas no exército popular, ao passo que as formas guerrilheiras de rebelião estão ligadas à produção camponesa, dispersada pelo campo em seu relativo isolamento. A partir da década de 1970, contudo, as técnicas e as formas organizacionais da produção industrial transferiram-se para unidades de trabalho menores e mais móveis, assim como para estruturas de produção mais flexíveis, mudança frequentemente vista como uma transição da produção fordista para a produção pós-fordista. As pequenas unidades móveis e as estruturas flexíveis da produção pós-fordista correspondem em certa medida ao modelo policêntrico da guerrilha, mas o modelo guerrilheiro é imediatamente transformado pelas tecnologias do pós-fordismo. As redes de informação, comunicação e cooperação – os eixos fundamentais da produção pós-fordista – começam a definir os novos movimentos guerrilheiros. Não só esses movimentos utilizam tecnologias como a internet como ferramentas de organização, como também começam a adotar tais tecnologias como modelos para suas próprias estruturas organizacionais.

Em certa medida, esses movimentos pós-fordistas pós-modernos completam e solidificam a tendência policêntrica dos anteriores modelos de guerrilha. De acordo com a clássica formulação cubana do foquismo ou guevarismo, as forças guerrilheiras são policêntricas, compostas de numerosos focos relativamente independentes, mas essa pluralidade deve em algum momento ser reduzida a uma unidade, tornando-se as forças guerrilheiras um exército. A ordenação em rede, em contrapartida, baseia-se na pluralidade contínua de seus elementos e redes de comunicação, de tal maneira que a redução a uma estrutura de comando centralizada e unificada é impossível. A forma policêntrica do modelo guerrilheiro evolui assim para uma forma em rede na qual não existe um centro, apenas uma pluralidade irredutível de nodos em comunicação uns com os outros. [pág. 121]


Como no caso da produção econômica pós-fordista, uma característica da luta em rede da multidão é que ocorre no terreno biopolítico – em outras palavras, ela produz diretamente novas subjetividades e novas formas de vida. É verdade que as organizações militares sempre envolveram a produção de subjetividade. O exército moderno produziu o soldado disciplinado capaz de cumprir ordens, como o operário disciplinado da fábrica fordista, e a produção do sujeito disciplinado nas modernas forças guerrilheiras era muito semelhante. Mais uma vez, a luta em rede, como a produção pós-fordista, não recorre da mesma maneira à disciplina: seus valores fundamentais são a criatividade, a comunicação e a cooperação auto-organizada. Naturalmente, esse novo tipo de força resiste e ataca o inimigo como sempre fizeram as forças militares, mas cada vez mais o seu foco é interno – produzir novas subjetividades e novas formas expansivas de vida dentro da própria organização. Já não se toma o “povo” como base, e a meta deixou de ser tomar o poder da estrutura do Estado soberano. Os elementos democráticos da estrutura guerrilheira são levados mais longe na forma em rede, tornando-se a organização menos um meio, e mais um fim em si mesma.

Dentre os numerosos exemplos de guerra civil nas últimas décadas do século 20, a vasta maioria ainda era organizada de acordo com modelos ultrapassados, fosse o velho modelo moderno de guerrilha ou a tradicional estrutura militar centralizada, entre outros casos no Khmer Vermelho cambojano, entre os mujahedin do Afeganistão, nos casos do Hamás no Líbano e na Palestina, do Novo Exército Popular das Filipinas, do Sendero Luminoso peruano e das guerrilhas das Farc e do ELN na Colômbia. Muitos desses movimentos, sobretudo quando são derrotados, começam a se transformar, assumindo características das organizações em rede. Uma das rebeliões que olham para a frente, ilustrando a transição da organização guerrilheira tradicional para formas em rede, é a Intifada palestina, que começou pela primeira vez em 1987 e voltou a manifestar-se em 2000. São escassas as informações dignas [pág. 122] de crédito sobre a Intifada, mas dois modelos parecem coexistir nessa sublevação.[100] Por um lado, a revolta é organizada internamente por homens pobres em nível extremamente local, em torno de líderes de vizinhança e comitês populares. Os apedrejamentos e conflitos diretos com policiais e autoridades israelenses que deram início à primeira intifada rapidamente se disseminaram por grande parte de Gaza e da Cisjordânia. Por outro lado, a revolta é organizada externamente pelas diferentes organizações políticas palestinas a maioria das quais estava no exílio no início da primeira intifada, sob controle de homens de uma geração mais velha. Ao longo de suas diferentes fases, a intifada parece ter-se definido por diferentes proporções dessas duas formas organizacionais, uma interna e a outra externa; uma horizontal, autônoma e disseminada e a outra vertical e centralizada. Desse modo, a intifada é uma organização ambivalente, que aponta para trás, em direção a formas centralizadas mais antigas, e também aponta para a frente, para novas formas disseminadas de organização.

As lutas contra o apartheid na África do Sul também exemplificam essa transição e a presença simultânea de duas formas organizacionais básicas, mas por um período muito mais longo. A composição interna das forças que desafiaram e acabaram derrubando o regime do apartheid era extremamente complexa e mudava com o tempo, mas é possível identificar claramente, pelo menos a partir de meados da década de 1970, com a revolta de Soweto, e ao longo da década de 1980, uma vasta proliferação de lutas horizontais. O ódio negro contra a dominação branca certamente era comum aos vários movimentos, mas eles se organizavam de forma relativamente autônomas em diferentes setores da sociedade. Os grupos estudantis foram protagonistas importantes, e os sindicatos, com uma longa história de militância na África do Sul, desempenharam um papel central. Ao longo desse período, essas lutas horizontais também mantinham uma relação dinâmica com os eixos verticais das organizações tradicionais e mais antigas de lideranças como o Congresso Nacional Africano (CNA), que se manteve [pág. 123] clandestino e no exílio até 1990. Podemos encarar esse contraste entre a organização autônoma e horizontal e a liderança centralizada como uma tensão entre as lutas organizadas (de trabalhadores, estudantes e outros) e o CNA, mas talvez seja mais esclarecedor reconhecer que também se trata de uma tensão no interior do CNA, uma tensão que em certos sentidos se manteve e ampliou-se desde a chegada do CNA ao poder mediante eleições, em 1994. Como a intifada, portanto, as lutas contra o apartheid assumiram duas formas organizacionais diferentes, assinalando um ponto de transição nessa nossa genealogia.

O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que surgiu em Chiapas na década de 1990, representa um exemplo ainda mais claro dessa transformação: os zapatistas são o pivô entre o velho modelo guerrilheiro e o novo modelo de estruturas biopolíticas em rede. Também demonstram esplendidamente como a transição econômica do pós-fordismo pode funcionar igualmente em territórios urbanos e rurais, ligando experiências locais a lutas globais.103 Os zapatistas, que surgiram como um movimento camponês e nativo, e basicamente continuam a sê-lo, usam a internet e as tecnologias de comunicação não apenas para distribuir seus comunicados para o mundo exterior como também, pelo menos em certa medida, como elemento estrutural dentro de sua organização, especialmente na medida em que ela se estende para fora do sul mexicano, alcançando os níveis nacional e global. A comunicação é elemento central da concepção de revolução dos zapatistas, e eles enfatizam repetidas vezes a necessidade de criar organizações horizontais em rede, em vez de estruturas verticais centralizadas.104 Cabe observar, naturalmente, que esse modelo organizacional descentralizado vai de encontro à nomenclatura militar tradicional do EZLN. Afinal, os zapatistas se consideram um exército, organizando-se de acordo com uma série de títulos e patentes militares. Observando-se mais de perto, contudo, é possível ver que embora adotem uma versão tradicional do modelo guerrilheiro latino-americano, inclusive com suas tendências para a hierarquia militar centralizada [pág. 124], os zapatistas constantemente minam essas hierarquias na prática, descentrando a autoridade com as elegantes inversões e a ironia típica de sua retórica. (Na verdade, eles transformam a própria ironia em estratégia política.105 O paradoxal lema zapatista do “comandar obedecendo”, por exemplo, objetiva inverter as relações tradicionais de hierarquia dentro da organização. As posições de liderança são rotativas, e parece haver um vazio de autoridade no centro. Marcos, o porta-voz principal e ícone quase mítico dos zapatistas, tem a patente de subcomandante para enfatizar sua relativa subordinação. Além disso, o objetivo do movimento nunca foi derrotar o Estado e invocar autoridade soberana, e sim mudar o mundo sem tomar o poder.106 Em outras palavras, os zapatistas adotam todos os elementos da estrutura tradicional e os transformam, demonstrando da maneira mais clara possível a natureza e a direção da transição pós-moderna das formas organizacionais.

Nas últimas décadas do século 20 também surgiram, especialmente nos EUA, numerosos movimentos que costumam ser agrupados sob a rubrica “políticas de identidade”, nascidos basicamente das lutas feministas, das lutas de lésbicas e gays e das lutas de fundo racial. A característica organizacional mais importante desses diferentes movimentos é a insistência na autonomia e a recusa de qualquer hierarquia centralizada, de líderes ou porta-vozes. De sua perspectiva, o partido, o exército popular e a moderna força guerrilheira parecem igualmente falidos, por causa da tendência dessas estruturas para impor a unidade, negar as diferenças e subordiná-los aos interesses de outros. Se não é possível uma maneira democrática de agregação política que nos permita preservar nossa autonomia e afirmar nossas diferenças, proclamam eles, haveremos de nos manter separados, por nossa própria conta. Essa ênfase na organização democrática e na independência também se manifesta nas estruturas internas dos movimentos, nas quais encontramos uma série de importantes experiências em matéria de processos decisórios colaborativos [pág. 126], coordenação de grupos de afinidade e assim por diante. A esse respeito, o ressurgimento dos movimentos anarquistas, especialmente na América do Norte e na Europa, tem sido muito importante, por sua ênfase na necessidade de liberdade e organização democrática.108 Todas essas experiências de democracia e autonomia, até mesmo nos menores níveis, representam uma enorme riqueza para o futuro desenvolvimento dos movimentos.

Finalmente, os movimentos de globalização que se estenderam de Seattle a Gênova e aos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e Mumbai, mobilizando os movimentos contra a guerra, constituem o exemplo até hoje mais claro de organizações disseminadas em rede. Um dos elementos mais surpreendentes dos acontecimentos de Seattle em novembro de 1999 e em cada uma das grandes manifestações ocorridas desde então é o fato de que grupos que até então considerávamos diferentes e até contraditórios em seus interesses agiam em comum – ambientalistas com sindicalistas, anarquistas com grupos religiosos, gays e lésbicas com os que protestavam contra o complexo carcerário-industrial. Os grupos não se apresentam unidos sob qualquer autoridade únicas, antes se relacionando numa estrutura em rede. Os fóruns sociais, os grupos de afinidades e outras formas de processos decisórios democráticos constituem a base desses movimentos, que conseguem agir conjuntamente de acordo com o que têm em comum. Por isso se denominam “movimento dos movimentos”. A plena expressão da autonomia e da diferença de cada um coincide aqui com a poderosa articulação de todos. A democracia define tanto a meta dos movimentos quanto sua constante atividade. Esses movimentos de protesto da globalização com toda a evidência se mostram limitados sob muitos aspectos. Para começar, embora sua visão e suas metas tenham alcance global, até o momento só têm mobilizado quantidades significativas de pessoas na América do Norte e na Europa. Depois, na medida em que continuarem a ser apenas movimentos de protesto, passando de uma reunião de cúpula a outra, não serão capazes de se transformar numa luta fundadora nem de articular uma organização social alternativa. Tais limitações podem ser apenas obstáculos temporários, e esses movimentos podem descobrir maneiras de superá-los. O que é mais importante para nossa exposição aqui, todavia, é a forma dos movimentos. Esses movimentos são o exemplo mais avançado até hoje de organização em rede.

Concluímos assim nossa genealogia das formas modernas de resistência e guerra civil, que evoluiu inicialmente de revoltas e rebeliões disparatadas de guerrilha para um modelo unificado de exército popular; posteriormente, de uma estrutura militar centralizada para o exército policêntrico de guerrilha; e finalmente, do modelo policêntrico para a estrutura de rede disseminada. Essa é a história que ficou para trás. É sob muitos aspectos uma história trágica, cheia de derrotas brutais, mas também é um legado extraordinariamente rico que propulsiona para o futuro o desejo de libertação e influencia de maneira crucial as maneiras de concretizá-lo. (...) A estrutura disseminada em rede constitui o modelo de uma organização absolutamente democrática que corresponde às formas dominantes de produção econômica e social e também vem a ser a mais poderosa arma contra a estrutura vigente de poder. (...) Acreditamos que a multidão coloca o problema da resistência social e a questão da legitimação de seu próprio poder e violência em termos completamente diferentes (pág. 129).

Efetivamente já sabemos algumas coisas que podem ajudar a orientar nossa paixão pela resistência (pág. 130). Em primeiro lugar, sabemos que hoje a legitimação da ordem global baseia-se fundamentalmente na guerra. Resistir à guerra, e portanto resistir à legitimação dessa ordem global, torna-se assim uma tarefa ética comum. Em segundo lugar, sabemos que a produção capitalista e a vida (e a produção) da multidão estão associadas de maneira cada vez mais íntima e se determinam reciprocamente. O capital depende da multidão e no entanto está constantemente sendo lançado em crises porque a multidão resiste à autoridade do capital e ao comando do capital. (Esse é um dos temas centrais da Parte 2, adiante.) No corpo-a-corpo que une a multidão e o Império no campo biopolítico, quando o Império recorre à guerra para se legitimar, a multidão recorre à democracia e a sua fundamentação política. A democracia que se opõe à guerra é uma “democracia absoluta”. Também podemos nos referir a esse movimento democrático como um processo de “êxodo”, na medida em que envolve o rompimento, pela multidão, dos elos que unem a autoridade soberana imperial ao consentimento dos subordinados. (A democracia absoluta e o êxodo serão os temas centrais do capítulo 3.)
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[96] O “jovem Marx” elabora uma crítica da transcendência que liga a violência do capital à violência do Estado. Ver por exemplo, Karl Marx, “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844” ....

[97] Para um breve apanhado da transição para os movimentos de guerrilha urbana em todo o mundo nesse período, ver Ian Beckett, Modern Insurgencies e Counter-insurgencies (Londres: Routledge, 2001), 151-82.

[98] Para relatos e análises em língua inglesa sobre a Autonomia na Itália na década de 1970, ver Steve Wright, Storming Heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism (Londres: Pluto, 2002; e Sylvere Lotinger e Christian Marazzi (orgs.) “Italy: Autonomia”, Semio-text(e) 3, n. 3 (2980). Ver também as longas entrevistas com muitos dos protagonistas encontradas em Guido Borio, Francesca Pozzi e Gigi Roggero (orgs.) Futuro Anteriore (Roma: Derive/Approdi, 2002).

[99] Ver Nick Dyer-Witherford, Cyber-Marx (Urbana: University of Illinois Press, 1999).

[100] Sobre a primeira intifada ver Robert Hunter, The Palestinian Uprising (Londres: Tauris, 1991). Sobre a segunda intifada ver Roane Carey (org.), The New Intifada (Londres: Verso, 2001).

103 Lynn Stephen explica como os zapatistas misturam a mitologia Tzeltal local com ícones nacionais, como Zapata, em Zapata Lives! Histories and Cultural Politics in Southern Mexico (Berkeley: University of California Press, 2002), p. 158-75.

104 Sobre a organização em rede da estrutura dos zapatistas, ver Roger Burbach, Globalization and postmodern politics (Londres: Pluto: 2001), 116-28; Fiona Jeffries, “Zapatismo and the Intergalactic Age”, em Roger Burbach, Globalization and postmodern politics, 129-44; e Harry Cleaver, “The Zapatistas and the Electronic Fabric of Struggle”, em John Holloway e Eloína Paláez (orgs.) Zapatista! (Londres: Pluto, 1998), 81-103.

105 O estilo dos textos do subcomandante Marcos – ao mesmo tempo militantes e bem-humorados – é o melhor exemplo da maneira como os zapatistas transformaram a ironia numa estratégia política. Ver subcomandante Marcos, Our World is Our Weapon (Nova York, Seven Histories, 2001).

106 Ver John Halloway, Change the world withou taking power, (Londres: Pluto, 2002).

108 Sobre o ressurgimento de grupos anarquistas, ver David Graeber, “For a New Anarchism”, New Left Review, 2ª. série, n. 13 [jan.-fev. 2002], 61-73.

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